Há poucos dias, em conversa com uma amiga, recordamos das dispensas que existiam nas casas mais antigas, de quem morava pra fora. Ela contou como era a que havia na casa da sua avó paterna, no Pinheiro, e eu relembrei da que existiu na casa onde me criei, na campanha.
Fui ao Google e descobri que, na verdade, elas ainda existem em muitos lugares do mundo com o nome de “Despensa de Cozinha”, que é o local da casa usado para guardar mantimentos e demais utensílios, e que são tradicionais nos Estados Unidos, no Canadá e em países da Europa.
Na casa do meu avô, pai do meu pai, ainda conheci, quando miúdo, uma cozinha grande, fora da casa, e uma dispensa no costado. Acredito que o local de cozinhar era em edificação anexa à casa para não trazer cheiros e sujeiras para o local das refeições, e também porque era fora da casa grande onde se reuniam algumas serviçais mais antigas e os peões de vida toda, quase da família, que viviam nos galpões.
Fogão grande, chapa de ferro, telhado sem forro, tisnado de picumã, mesa comprida de madeira rústica, e alguns bancos toscos espalhados pelos cantos. Lembro muito bem das chaleiras de ferro fundido, muito pesadas, em cima do fogão, e uma bacia grandota de alumínio para lavar as louças. Havia também uma gamela de canela preta para salgar carne e um balde velho para juntar lavagem para os porcos do chiqueiro.
No caso da dispensa da casa da avó da minha amiga, a instalação ficava ao lado da cozinha e era mobiliada por tuias e prateleiras de tábuas para guardar mantimentos. Latas de carne na banha, açúcar, rapaduras caseiras, farinha de trigo e de milho, doces para serem comidos pelos grandes no inverno (marmeladas, figadas, goiabadas e doces em calda, do tipo compotas).
Ali se armazenava o pão caseiro, assado no forno de lenha, numa lata grande de tampa redonda, e os sequilhos para o café da tarde ou para comer com mate doce, que era um costume antigo das comadres quando se visitavam.
Ali ficavam guardadas as bebidas para o baile, que chegavam antes e eram proibidas para os miúdos, netos e vizinhos, que ansiavam pela novidade de um refrigerante, mesmo que fosse fora da geladeira a querosene. De preferência roubado.
Na dispensa lá de casa, havia uma vara pendurada por braços de arame, prendidos nos caibros, onde ficavam o charque curado, as linguiças do último porco carneado na entrada do inverno e um pedaço de toucinho salgado, junto de umas peles para temperar o feijão, que nunca podia faltar na mesa todos os dias.
Agora, nos tempos de hoje, me ponho em pensamentos e concluo, sem muito me esforçar, que a dita dispensa, que na real é despensa, fez parte da vida de muita gente já desgastada pela usura, e que a nossa vida, de per si, também tem muito da funcionalidade dessa antiga dependência: guardamos as nossas energias emocionais em algum lugar da alma ou do coração para enfrentar os tempos de escassez dos sentimentos, as safras de ingratidões, as fases dos desamores, as ocorrências mundanas de incompreensões e as línguas dos fofoqueiros de plantão, que, se não conhecem, inventam para agitar as redes sociais das ruas por maldade, ou mesmo por mero divertimento ou inveja.
E depois dessas divagações dispensáveis, estou seriamente intencionado a construir uma despensa para guardar alguns potes do fel destilado pelos faladores da província caçapavana e até as minhas alegrias perenes.