O cenário parecia de filme. Trânsito parado, animais na pista, barracas improvisando casas com restos de móveis salvos, carros e caminhões submersos, helicópteros descendo e subindo, ambulâncias e veículos de polícias transitando e dezenas de barcos e jetskis navegando pelas ruas
O amanhecer frio do Pampa já dava indício da longa viagem que teríamos pela frente. A empresa terceirizada pela Prefeitura, através da Secretaria de Assistência Social em parceria com a Geral, que organizou as listas de resgate, levou quatro motoristas em dois ônibus – totalizando 75 lugares – no trajeto, que sofria interrupções e pontos de alagamento, e que era incerto, mesmo com planejamento antecipado em parceria com a PRF.
A BR392 e BR290, até quase na chegada de Charqueadas, estavam iluminadas pelo tímido sol, que lembrava o cancioneiro gaúcho, de orgulho de um “Rio Grande do Sul, céu, sol, sul, terra e cor”, mas, o que se veria mais a frente, após trechos de estradas erodidos e danificados, seria um mar de tristeza, e de um rio grande que levou cidades, casas, pessoas, sonhos. Um cenário de guerra que estamos vendo também pelas redes sociais e televisão.
Após a parada em Eldorado, onde estava ocorrendo uma megaoperação de conserto da BR290 para dar trânsito ao tráfego de veículos oficiais, ambulâncias e doações, e à população local, o cenário parecia de filme. Trânsito parado, animais na pista, barracas improvisando casas com restos de móveis salvos, carros e caminhões abandonados ou submersos, helicópteros descendo e subindo do acampamento feito ao lado da pista, ambulâncias e veículos de polícias transitando com sirenes ligadas, e dezenas de barcos e jetskis navegando pelas ruas de Eldorado, onde a altura da água cobria ainda os telhados, após a enchente que ocorreu uma semana antes. E esse cenário se repetiu ao longo dos próximos quilômetros, Porto Alegre adentro.
O ônibus conseguiu entrar na capital pelo novo viaduto da BR290, única via de acesso, na contramão do trânsito normal. Do alto do viaduto se avistava a ponte móvel, com a cabeceira debaixo das águas do Guaíba e uma Porto não mais Alegre. Nem os Estádios do Grêmio e do Internacional mexiam mais com nossos corações, abatidos por um jogo perdido contra a natureza e sua força, reivindicando ações nossas contra a ganância desenfreada que vêm destruindo ela há séculos, sem medidas de reparos.
Após mais de duas horas na RS118 (entre a Freeway e Viamão) única via de acesso de entrada e saída da capital gaúcha, por onde resgates, doações que chegavam, pessoas que entravam para ajudar, outras que saiam para esquecer o que viram e presenciaram, os ônibus chegaram na PUC, na Ipiranga, para resgatar os caçapavanos, que, aliviados, e quase que calados, partiram no caminho inverso, rumo ao pampa. Outro cancioneiro local tocava em minha mente, enquanto passava o possível itinerário aos passageiros: “nós não tememos refregas, meu amado chão sulino, como dizia o guapo Lino, Caçapava (e o Rio Grande) não se entrega!”
Que todas as vítimas desta tragédia que inundou o Estado, e que todos os demais gaúchos que, mesmo no conforto dos seus lares, assistem tristemente o que vem acontecendo, possam encontrar forças e conforto e que, da mesma forma que estendem a mão ao próximo para partilhar sua tradição no mate acolhedor, estendam a mão para ofertar empatia, abrigo, tempo, afeto, daquilo que lhes é possível doar.
Texto: William Brasil, jornalista responsável pela Prefeitura de Caçapava, que ajudou na organização e resgate do retorno de caçapavanos que estavam ilhados em Porto Alegre e que perderam casas, familiares, amigos.