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Noutro dia recente, li que “quando se perde a aura, por distanciamento da origem ou por se levar uma vida mecânica, há forte possibilidade de triunfar a depressão”. Eu concordo e explico o porquê
Há muito tempo, faz diversos anos, que ando preocupado com a falta da obrigação de fazer alguma coisa por ofício. Preciso construir uma nova rotina de afazeres úteis. Se não para os outros, pelo menos, para mim. Que ajude a manter o ego em pé, faceirito, refestelado.
Noutro dia recente, li que “quando se perde a aura, por distanciamento da origem ou por se levar uma vida mecânica, há forte possibilidade de triunfar a depressão”. Eu concordo e explico o porquê: com certeza, passa pela nossa aposentadoria o tão desejado, planejado e ansiado descanso remunerado, que nos retira da rotina do trabalho de uma vida, e a falta de obrigação com horários, compromissos, afazeres, reuniões, viagens, etc., dependendo da profissão de cada um.
Como vocês sabem, me criei no interior e, muito jovem, já vim para a cidade para estudar, como era comum naquele tempo, me distanciando da própria origem campesina. Depois, pela natureza da carreira profissional que escolhi ou que se ajeitou pra mim, andei por aí, Brasil afora, sempre na rotina quarteleira de assessorar e comandar com diferentes nuanças, dependendo do tempo e do lugar. Evoluindo sempre e planejando a carreira dentro de um quadro de previsibilidade organizacional que a profissão das armas nos oferece, numa vida nada mecânica.
Hoje, em casa, afastado do mundo onde tenho origem e excluído da caserna por aposentadoria, ando mais perdido do que cego em tiroteio, sem ter o que fazer e sem ninguém para mandar ou obedecer, à deriva na correnteza da existência. Pior ainda na pandemia, que sufocou as pessoas e apavorou umas quantas outras, pela incerteza do seu desfecho favorável.
Quase todos os dias, agradeço à Gazeta por me confiar essa obrigação de escrever uma crônica semanal, que exige de mim algum pensar para não ser repetitivo e poder botar pra fora anseios de um ancião ansiado de tanto ócio improdutivo (ficou quase poético, não?)
Já aumentei a criação de garnisés, mergulhei no artesanato das carrancas de madeira, conheço a maioria dos filmes e séries da Netflix, já reli uns cinquenta livros dos que tenho guardados, voltei a jogar xadrez contra o computador e ando caminhando todos os dias na Estrada da Aviação, quando o inverno permite, é claro, de poncho não dá.
Agora comecei um curso de guasqueiro pela internet. Já me sugeriram que eu aprenda a bordar ou fazer crochê, mas ainda não tive coragem. Afinal, guardo comigo aquela fleuma de combatente reformado, acostumado a planejar ações de ataque e defesa contra os inimigos hipotéticos, em zonas de guerra imaginárias, perigosas pelos seus campos minados e ações de guerrilha inesperadas, que denominamos de Teatros de Operações.
Um conhecido sugeriu que eu me alistasse como voluntário na guerra da Ucrânia. Recusei, pois aí seria demais eu arriscar morrer tão longe da querência para a qual ansiei voltar por quase 40 anos. E as causas dessa guerra, até hoje, não me parecem motivadoras ao extremo. Eles que são eslavos que se entendam.
Ando mesmo atrapalhado para identificar esse inimigo que me atucana e desafia, camuflado nas dobras da existência longeva. Aliás, graças a Deus, ainda mais depois da quarta dose contra a Covid e uma da gripe.