Por Lauricio Costa
Setembro é o mês da gauchada. Os dias estão maiores, a passarinhada canta logo cedo, prenúncio da primavera. Caçapava está em polvorosa. É sábado, transeuntes por todos os lados, comércio abarrotado de gente, são os últimos preparativos que antecedem a Semana Farroupilha.
Quase 10 horas, sigo lagarteando com meu mate, cuidando todo aquele povo de um lado e outro da rua, de porta em porta. O Seu Zeno, meio desnorteado, vai a cabresto da sua querida Isaura rumo as Pernambucanas, é a liquidação de inverno que vem movimentando aquele lado da calçada. O Mamed, como bom comerciante, não deixa por menos, estende mantas e cobertores em frente à Cinderela e vai convidando a todos para conhecer as novidades.
Do outro lado da via, o Café do Luizinho é o ponto de encontro dos rapazes, reunidos para falar de futebol, política, e claro, da vida alheia. O cheirinho de café passado e de pastel frito, bem como a animação que antecede o clássico Caré de amanhã ecoam XV a fora. Animados, torcedores rubros chutam os placares, sempre de goleada. Já os tricolores parecem cabisbaixos, o time não vem ajudando, melhor falar dos novos rumos do Brasil, dizem que os milicos cairão em breve. Por ali, sempre se encontram simpatizantes do PDMB e do PDS, as maiores forças do município. Também tem o Nazeazeno, Brizolista nato. Volta e meia acirram-se os ânimos e alguém desce a rua resmungando, melhor bandear-se para o Bar do Adroaldo antes que dê confusão maior.
‒ Nicolau! Nicolau! – entra porta adentro com uma pasta cheia de retratos e anotações. É o Cassol, com alguns achados sobre o Coronel Coriolano Castro, acho que agora finalizam o livro que estão a escrever. O amigo anima-se com as novidades e convida-o a sentar à mesa com o também entusiasmado Rodolino Garcia, apaixonado por história.
Tropicando pela calçada esburacada vem a pequena Zilah, agarradita no dedo mingo do Alcy. O homem é só sorrisos com a miúda aprendendo a caminhar. Aquele fervor de gente animada também é inspiração para novos escritos. Está por finalizar um livro sobre um tal mestiço, e as novas ideias já devem estar em rebuliço em sua cabeça.
As gurias também correm para aproveitar o comércio aberto, em seguida começam os bailes, e ninguém quer ficar sem namorado. Fitas e rendas na Casa Wantuil Ribeiro Alves, arranjos de cabelo na Colombina, as últimas novidades de saiotes na Batista Magazine. Todos fazem o pé de meia nessa época. Já os guris, esses vão no Bolicho do Ari, que os recebe já esfregando as mãos, o velho não deixa ninguém sair sem pilcha.
Dobrando a casa Corina, vem subindo o Zé Luiz com a criançada, dois mais moreninhos e a alemoa no colo, uma bonequinha de tão linda. O mais taludo vem agarrado num filhote de ovelheiro, cujo nome é Valente. Coitado do bichinho, vem assustado com tanto aperto e judiaria, é a forma do pequeno demonstrar o amor pelo cusquinho. Este guri é por demais parecido com o seu avô Alcendino. Se puxar pelo velho, vai sair PDS roxo. Já o mais novo, e mais arteiro, corre na frente, aos gritos de “espera João, cuidado com a rua!”. Nisso, leva um buzinaço do fusquinha da Maria Augusta e da Anna Zoé. Passado o susto, o guri, com os olhos arregalados, para na janela do velho Vitorino Melo, que sempre tem doces para a criançada. Dizem que a Júlio de Castilhos não terá mais trânsito assim, logo será construída a grande calçada.
Em frente à Casa Feliz, jovens engraxates oferecem seus serviços, sábado é dia de deixar os sapatos num lustre só. Por ali, uma roda sadia de conversa: Edu Miranda, Orlando Alves, Jorge Oliveira, Nélio Silveira, Breno Pereira e Rivadavia Severo, até o Dr. Saldanha vai se chegando por ali, todos meus clientes. De supetão, o Euclides Torres esbarra seu Fiat 147 em frente a Caixa Econômica. Meio atrapalhado, óculos tortos no rosto e alguns papéis a tiracolo, vai ao encontro daqueles senhores. O motivo: contar suas novas descobertas sobre a morte do seu bisavô, um alemão que veio defender o Brasil lá pras bandas da Argentina. Tinha tudo pra morrer por lá, acabou degolado pela gauchada numa brutalidade medonha. Essa história até daria um livro.
Enquanto a vida discorre sob meus olhares, um piá magrelo e cabeludo pega em minha mão e convida para comer uma pipoquinha na esquina da Barateira. Ele puxa seu caminhãozinho pela corda enquanto faz barulho com a boca imitando o motor. Aquele toquinho velho de carroceria amarela vem passando trabalho, carregado de bolitas. Sua mãe o chama, precisam ir até a rodoviária esperar a avó que vem chegando de Santana, veio passar o final de semana junto à filha e aos netos. Me despeço, estendendo-lhe a mão e entregando-lhe uma balinha de hortelã. Ele retribui com um “obrigado, tio”, e sai com aquele caminhão a reboque no más.
E assim a vida vai seguindo seu rumo na bela Caçapava. Eu, um velho pipeiro aposentado, sigo fumando meu pito, agradecendo por tudo. Se em outrora eu os servia com a minha carroça e o meu burrinho, hoje sou servido com a mais bela visão da gente da minha terra.
Foto: Isabela Oliveira