Respeito foi o nome que uma tia minha deu a um guaipeca picaço adotado em tenra idade para ser o guardião da casa, lá num fundão de campo, na costa do Arroio da Divisa, bem pertinho de onde existiu uma cancha de carreira, na fazenda grande, quando os campos ainda não haviam sido repartidos, naqueles tempos de muito gado e pouca gente pra lidar com o bicharedo.

Essa tia de quem lhes falo foi uma das últimas irmãs a casar, e recebeu um campo de vargem de boa pastagem, grama de forquilha, e um pedaço de terra meio mesclada com areia, buenísima para o plantio de milho, mandioca, batata e abóboras de todos os tipos. Até melancia produzia bem naqueles cercados da coxilha grande, cujo ladeirão era bordado por caponetes de guabiroba do campo, por onde se entocavam mulitas e prosperavam muitos camotins de lechiguana, cujo mel, os lagartos melavam com o rabo, às chicotadas.

Meu tio, o marido da minha tia, nunca foi homem de lavoura, e muito menos de criação de gado. “Le gustaba” uma lida mais civilizada, no comércio, numa venda, onde trabalharia em casa, fora do rigor da campanha, e amealharia seus trocos, no ofício de bolicheiro, na sombra, podendo gastar sua prosa com a freguesia que lhe sustentaria a sobrevivência. Ao final, quando envelhecesse, estaria aposentado pelo INSS e poderia descansar tranquilo. Ao contrário da vida bruta dos pequenos chacreiros do interior, sem água tratada, sem luz elétrica e sem acesso por estrada que prestasse.

Quando seu único filho concluiu o ensino na escola rural, precisando mudar para um colégio na cidade, resolveram mudar toda a família.

Respeito era um cusquinho faceiro: ajudava a buscar as vacas de leite, escorraçava os gambás e jaguatiricas que rondavam o galinheiro, alertava quando da aproximação de algum visitante indesejado e acompanhava o dono nas volteadas de campo. Gordo e são de lombo, recebia, entreverado com as conversas da sua dona (altos monólogos), as melhores sobras das refeições da casa. Restos de arroz com charque, ossos de costela, algum ovo extraviado fora do ninho e até partes da fussura, em dias de carniça de porco ou ovelha.

Decidida a mudança da família, a minha tia tratou de informar ao Respeito que ele não iria para a cidade:

– Tu não vai, Respeito, tu vai ficar cuidando da tapera… Tu não tem jeito de gente de cidade, vai te assustar com o movimento…

O cusco faceiro, de rabo erguido e dentes arreganhados, parecia que entendia a sua sina de cachorro campeiro.

Chegado o dia do carregamento da mudança, não deram ao serviçal companheiro o direito de se aboletar na carroceria do caminhão carregado. Latiu enquanto pode, sem entender direito aquele desmonte repentino da casa que também era sua. Enquanto o caminhão andou devagar pela estrada ruim, por cerca de uns dez quilômetros, correu latindo atrás da comitiva. E ninguém pareceu notá-lo. Nem mandaram parar o caminhão carregado para apanhá-lo.

Mas quando o transporte atingiu a estrada asfaltada, onde todos os carros andam loucos de pressa, Respeito atarantou-se com aquele trânsito inusitado, até servir de tapete para uma carreta bitrem carregada de toras de eucalipto. Esparramou pelo asfalto impiedoso seu sangue, sua vida e seu desejo de animal fiel na obrigação de acompanhar os donos, fosse aonde fosse. Morreu ali, anônimo, na sua condição de animal irracional. E, acabou não indo mesmo para viver na cidade, para onde os outros foram e viveram muito felizes sem a sua companhia. Nunca mais se lembraram dele.